Portal DBS Server – Maio, 2014
Ao refletir sobre a capacidade de contato que a humanidade vem perdendo pelo uso excessivo do digital, filósofo pede que não deixemos que a criação soterre o criador
Situações às quais podemos recorrer para exemplificar o quanto a tecnologia alterou os hábitos do ser humano não faltam. E isso não vem de hoje. Se voltarmos ao passado e analisarmos apenas o impacto da televisão na convivência familiar e até com os vizinhos, como sugeriu o filósofo Mario Sergio Cortella, veremos como a entrada desse aparelho nos lares afetou a convivência e os momentos de diálogos, abrindo caminho para o que temos atualmente, numa escala e proporção maiores obviamente, com a ascensão da vida digital. Será que é esse mesmo o mundo que queremos?
Ao citar o livro Alice no País das Maravilhas, lembrando inclusive que a publicação inspirou o filme Matrix, basta observar a primeira cena na qual o computador pede ao personagem principal, Neo, que siga o coelho branco, Cortella relembrou que quando Alice cai no mundo desconhecido, fica com a sensação de não saber se aquilo é real, se é verdade ou mentira. “É como o grande Facebook. Estamos num mundo atual com uma beleza que vocês ajudam a construir, mas um pouco perplexos. Vivemos um sonho de mobilidade, simultaneidade, tempo real. Mas há uma sensação de um pesadelo e que uma hora vamos acordar, ou que não vamos, ou que é preciso acordar. Se construímos esse mundo e ele pode nos tocar de maneira negativa, podemos mudar”, refletiu.
Nos últimos anos, por conta do advento das redes sociais e da popularização dos smartphones, assistimos à uma grande transformação nos hábitos das pessoas que deixaram programas tradicionais em troca de passar horas navegando na internet seja por meio de um laptop, tablet ou smartphone. Este último aparelho impactou até mesmo reuniões em grupos realizadas em bares e restaurantes. É comum encontrar mesas onde, em vez de conversarem, as pessoas gastam momentos preciosos de convivência atentas às telas de seus celulares. Isso tem gerado um movimento reverso, quando amigos pedem uns aos outros que não atendam chamadas (com poucas exceções) e não postem ou consultem as redes sociais durante o encontro.
Muitos argumentam que tal reviravolta comportamental é parte da evolução, e aí o filósofo lança um crítica e também uma correção ao uso da palavra evolução. “Evolução é mudança e não melhoria. Darwin não usou evolução como melhoria, usava com o significado certo. Câncer evolui e falência progride. Alguns citam Darwin dizendo que sobrevive o mais forte, e ele falava do mais apto e nem sempre o mais apto é o mais forte. Haja vista povos que eram mais frágeis economicamente, politicamente e sobreviveram às nações mais fortes”, ponderou, ressaltando que nem tudo que evolui é bom.
O fato é que sem um balanceamento adequado da vida presencial com a digital, muitos dos benefícios trazidos pela tecnologia podem se converter em pesadelos irreversíveis. Cortella lembra, por exemplo, que a geração mais nova voltou a escrever, ainda que sejam textos mais curtos via Facebook, Twitter e WhatsApp, o que é um ganho na avaliação do filósofo e educador. “Eles escrevem errado? Sim, mas todo mundo escreve errado antes de escrever certo. Eles escrevem ‘vc’ em vez de você. Mas há 300 anos seria vossa mercê, há 200 anos vosmecê, depois você e o mineiro fala ocê”, brincou.
Além disso, Cortella lembrou que os idiomas evoluem e ganham novas palavras, sotaques e formatos de escrita. As expressões “refri”, já tão difundida para refrigerante, e “cerva”, para cerveja, por exemplo, podem vir a integrar o vocabulário formal da língua portuguesa no futuro e assim segue o fluxo de evolução das línguas. Até por isso, como ressaltou o filósofo, a ciência sempre recorre ao latim para dar nome às descobertas. Como é uma língua morta, por não ser mais falada por nenhum povo, garante precisão.
Apesar do tom informal e até mais leve em algumas passagens, Cortella atentou ao fato de que estamos cada vez mais com medo de gente. Nascido em Londrina e morador da capital paulista há 46 anos, ele relatou que, há 30 anos, caminhando à noite pela cidade ao voltar do bar ou da igreja, era um alívio ter pessoas nas ruas. “Tínhamos medo de defuntos, passávamos longe dos cemitérios. Hoje, nas grandes cidades, se saímos às 11 da noite e ouvimos passos, pensamos ‘meu Deus, vem vindo outra pessoa’. Em algum momento, nos acostumamos com a ausência do humano.”
Tudo isso serve de alerta para o impacto que o mundo digital impõe nas vidas das pessoas. Todo o encanto das novas tecnologias gera distração e nos distancia da conversa, como frisou o professor Cortella. É óbvio que quando se vai a um hospital você quer ter acesso ao melhor da tecnologia, mas de longe deseja um médico que não coloque a mão em você para fazer o exame da melhor forma possível.
“Às vezes damos provas de tolice e uma delas é nossa incapacidade de tendo a possibilidade de vida em abundância, nos distrairmos com o que precisa sobrar. O mundo digital tem coisas magnificas na conectividade, mobilidade, instantaneidade, mas não pode fazer com o que fizemos com várias coisas de nossas cidades, tirar a fertilidade. Somos homens e mulheres que construímos o magnifico que é o mundo digital, mas esse magnifico não pode nos soterrar.”