Administrador, Novembro, 2018
Consumir ficou confuso porque escolher passou a doer. Há muito tempo consumir como ato de escolher não era símbolo de lado, posição, decisão, mas agora é! Novamente esquerda e direita. Novamente polarização. O nacionalismo ressurge como resposta à crise de identidade global. Os imigrantes, páreas da globalização desenfreada e mal orquestrada, aparecem como vilões. O mundo certamente não é mais um lugar facilmente decifrável.
No diapasão da mudança de era em que vivemos, nós, indivíduos-cidadãos-consumidores, estamos perdidos. Nosso único lastro, para nossa perdição adâmica, parece ser nós mesmos. As igrejas e as religiões em geral, as doutrinas políticas e filosóficas antes tão terra-firme, e mesmo a família, seja lá o que se configure como tal, não dão mais as respostas confiáveis que precisamos. Lutamos tanto pela liberdade disso tudo, que agora ficamos sem nada!
A sociedade fluida, com suas relações fluidas, inexiste como sociedade propriamente dita; e o ajuntamento irracional de pessoas domina em forma e em expressão. As culturas históricas estão sob risco, e com elas, os valores mais significativos e definidores dos grupos humanos.
De um lado o cultivo do bom, dos valores positivos, como amor, acolhimento, aceitação, colaboração, proteção, reconhecimento… de outro, discórdia, desavença, desinteresse e, acima de tudo, individualismo. Sim, estamos no mundo do pseudo: pseudolíderes, pseudointelectuais, pseudo-religiosos, pseudo-celebridades… killfie, bullying, terrorismo?!
Mas bom e ruim é preto e branco; é dicotômico, é maniqueísta… E, nós, seres humanos, estamos pintados de cinza… em cinco milhões de tons. Não é fácil ser e é mais difícil ainda não ser!
Não bastasse tudo isso, ainda há o fator instantâneo, digital, compartilhado. Sim, a revolução de fato não foi televisionada, mas só porque ela está sendo disseminada exponencialmente! Na verdade, não há uma revolução propriamente dita e sim o efeito mutante derivado de infinitas nano-revoluções, promovidas por infinitos indivíduos – reais, virtuais, robóticos e avatares – que deixam sua marca no ecossistema digital e em suas rebarbas de mundo real.
Nesse contexto, em que errados estão certos, certos estão errados e todos estão certos e errados ao mesmo tempo, a relação do indivíduo com seu processo de consumo, baseado em seus valores, aspirações, necessidades e possibilidades – e nas multi-influências que sofre a todo momento – passa a ser cada vez mais mutável, flexível e variante. Fidelidade? Lealdade? Experimentação sim, porque a sociedade é trans.
Marcas são marcas porque marcam, devem marcar, assim como pássaros devem voar e peixes nadar. Compõe seu círculo de latência natural, sua finalidade existencial, seu DNA, seu reason-why darwinista… Etimologicamente marcar (o que faz a marca) significa “deixar cicatrizes”, idealmente boas cicatrizes… memórias, confortos, mimos, experiências, prazeres, concordâncias, pertencimento na mente, no coração e na alma daqueles que por ela escolhem ser e/ou são marcados.
Só que agora, nessa nossa sociedade etérea, as marcas sofrem como pássaros em desertos; simplesmente não há árvores para pousar, repousar e aninhar. Não há corações confiáveis.
Eis então o novo desafio das marcas: Que corações marcar? Como encontrar? Como ser relevante e ressignifcar as relações? Como enredar histórias? Como existir com finalidade e assim perdurar? Como sobreviver à mudança de era se adaptando darwinisticamente ao seu hospedeiro, o consumidor e seu tão volátil coração? E quem olha pra isso nas empresas? Aliás, que consumidor pensa nisso quando consome?
Consumo hoje é frio e coisificado. Só há o ato, quase sem reflexão, de se usar. Esse é o verbo da moda… usar e deixar-se ser usado. As marcas deixam de marcar e passam a ser usadas. E também usam. Pervertem a razão existencial da relação de consumo a que se propuseram, passando a expressar a instantaneidade da preferência… geralmente circunstancial e infiel.
Consumidores mudam de marcas; mas marcas também mudam de consumidores. Divergência, distanciamento, logo agora que tudo ficou digitalmente mais próximo, mais gutural. Esse é o paradoxo: distantemente perto, longinquamente presentes, proximamente desinteressados, se vê sem enxergar, se ouve sem escutar, se toca sem sentir. É a histeria auto-enganadora dos que não acreditam no que vêem, mas defendem o que ouviram dizer nas recomendações e nas avaliações de outros consumidores histéricos. É fluido e é frio, apesar dos likes, dos emoticons, das carinhas pasteurizadas.
O que são as marcas? O que os indivíduos consomem? Agora somente a sensação do momento, a solução da angústia pontual, a resolução do “tenho que ter”. Como efeito, está se perdendo mais esse elo, em prol do volume global, do estar em tudo e em todos, meio que como o mito de Prometeu.
Conhecimento gera certeza, que gera confiança, que gera segurança. Só que malucamente não. Nunca soubemos tanto; e nunca tivemos tanta desconfiança e tanta falta de confiança… nunca fomos tão inseguros. E tão sozinhos, mesmo sendo reis e rainhas nessa colméia social de seguidores, fãs e haters.
Qual será o papel das marcas então? Seja qual for a resposta, ela terá que lidar com o ser humano mutatis mutandis. Temos enorme dificuldade de lidar com a finitude, com barreiras, com o vazio, assim como temos enorme problema em aceitar simplesmente o simples. Relativizamos demais. Precisamos de alguns absolutos. Parece que esquecemos – ou fingimos esquecer – que alguns pretos são e serão para sempre pretos e alguns brancos, simplesmente brancos.
Sua marca consegue ser preta ou branca nesse universo digitalmente cinza? É certo que ela quer ser colorida. E parecer colorida e atraente. Mas ela consegue ser identificada simplesmente como preta, ou como branca? Ela é inovadora? Ela exige sua transpiração? Ficam os questionamentos, mas que venham as práticas.