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Estadão, Agosto, 2018

Está pautada para o próximo dia 5 de setembro a conclusão do julgamento do Recurso Extraordinário n° 566.622, procedimento que ocupa as prateleiras do Supremo Tribunal Federal desde 2007. Não menos antiga, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2028 tarda já 19 anos para ouvir dos Ministros da Suprema Corte brasileira um referendo definitivo. Basicamente ambos feitos, e outros tantos a eles apensados, tratam de matéria requentada, pacificada a bem da verdade, cujo deslinde não é segredo nem mesmo para um estudante do segundo ano do curso de direito.

Relembrando uma expressão comumente utilizada no Plenário do fórum situado na Praça dos Três Poderes, “até as pedras sabem” que leis ordinárias jamais podem dispor sobre limitações ao poder de tributar do Estado, mormente quando tais normas modificam outras estampadas no Código Tributário Nacional, este um diploma com status de Lei Complementar.

Pois é isso que vêm fazendo, há quase três décadas, dispositivos da Lei n° 8.212/1991, posteriormente chancelados e incrementados por outras regras expostas nas Leis n° 9.532/1997, 12.101/2009 e, finalmente, na 12.868/2013. Pior: servem ditas regras escancaradamente inconstitucionais de amparo para a edição de incontáveis Portarias Ministeriais e de uma plêiade infinita de atos normativos hierarquicamente irrelevantes, mas que findam por inovar um já instável sistema legal.

Desorientadas em meio ao caos normativo, encontram-se milhares de entidades beneficentes, promotoras de políticas públicas de assistência social, saúde e educação, cujo protagonismo e comprometimento devotado às suas respectivas missões são as únicas razões para ainda não testemunharmos o colapso final da sabidamente ineficiente rede pública de amparo aos menos favorecidos nas áreas acima citadas.

A tais entidades a Constituição Federal de 1988 conferiu uma inconteste hipótese de imunidade, nos termos do §7° do artigo 195, especificamente no que se refere ao recolhimento das contribuições sociais, sendo certo que as únicas regras que validamente disciplinam tal expediente são as fixadas pelo artigo 14 do Código Tributário Nacional. Não foi outra, inclusive, a lição recentemente consagrada pela Súmula n° 612 do Superior Tribunal de Justiça.

Ocorre que é justamente isso que as mencionadas leis ordinárias, popularmente conhecidas como “leis da filantropia” desrespeitam, de modo a criar um irregular regime jurídico paralelo, confuso e imprevisível, cujos resultados são conhecidos por todo o setor. Não há organização que hoje seja capaz de dizer com segurança se seus certificados serão renovados ou não, em que prazo e, incrivelmente, a qual norma será o pedido submetido quando da avaliação pelos Ministérios competentes.

Faz tempo que a letargia das nossas Cortes não surpreende mais ninguém; aliás, a morosidade é o que por padrão se espera da justiça brasileira, sem viés de melhora. Ocorre que determinados temas, em determinadas circunstâncias, não podem jamais depender de processos que demoram décadas, principalmente quando se contempla, como é o caso, uma tese consolidada.

Não sejamos inocentes: o impacto arrecadatório de julgamentos como os aqui citados não raramente é capaz de fazer com que teses mirabolantes despontem das peças de defesa da fazenda pública, na vã tentativa de defender o indefensável. Em ato extremo, tentam emplacar o expediente do efeito modulador, sob o constrangido argumento de que a solução para o erro seria demasiadamente custoso para o erário.

Ora, não há outro remédio para normas inconstitucionais em um Estado dito de Direito que não o lixo da história. Aliás, descarte neste presente caso já tardio, pois não são poucos os estragos já consolidados: inúmeras entidades já fecharam as portas graças à aplicação de regras gestadas na madrugada por medidas provisórias que sequer mereceram uma única reunião com os atores representativos do setor.

E é bom que se diga: os fechamentos de hospitais, creches e escolas são as feridas institucionais. Lesão irreparável mesmo sofreram e continuam sentindo os pobres, os idosos, os doentes, enfim, os marginalizados que dificilmente encontrarão na rede oficial a mesma qualidade dos serviços educacionais, de saúde e de amparo socioassistencial que desapareceram asfixiados por protocolos inconstitucionais e inexequíveis.

Recente pesquisa promovida pelo Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF) e realizada pela DOM Strategy Partners, valendo-se de dados do próprio governo, mostrou que a cada R$ 1,00 não recolhido em razão da imunidade das entidades filantrópicas, R$ 5,92 retornam para a sociedade sob forma de serviços e benefícios.

Para citar apenas o setor da saúde, mostrou o levantamento que 53% dos atendimentos SUS são realizados pelas Santas Casas e hospitais filantrópicos (única opção de atendimento em 990 municípios do Brasil). Na educação básica à superior, são mais de 600 mil alunos bolsistas que abraçam a rara oportunidade de estudar em instituições reconhecidas pelos mais rigorosos rankings de avaliação do país. Finalmente, na área da assistência social, o setor filantrópico responde por 62,87% das vagas privadas ofertadas (com atendimentos 100% gratuitos). Enfim, são quase 9.000 entidades que realizam cerca de 161 milhões de atendimentos anuais e geram 1,3 milhões de empregos.

Que o Supremo Tribunal Federal sepulte de vez os maculados dispositivos das inconstitucionais leis da filantropia, que os Ministérios parem imediatamente de exigir o atendimento a condições irremediavelmente viciadas desde a sua origem, que a fome arrecadatória não prevaleça sobre o princípio da solidariedade social, que a sociedade civil organizada seja ouvida pelos entes estatais de modo a garantir a sobrevivência e a qualidade dos serviços do setor beneficente, tudo naturalmente amparado em normas válidas, sempre com os olhos voltados para os legítimos interessados: os mais necessitados.

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