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InstoéDinheiro, Março, 2018

A rede social de Mark Zuckerberg estava na berlinda por conta das notícias falsas. Agora, dados de 50 milhões de usuários foram usados ilegalmente para influenciar a eleição de Donald Trump e o referendo do Brexit. O escândalo derrubou seu valor de mercado e coloca seu modelo de negócios em risco

Crédito: AP Photo/Marcio Jose Sanchez

Mark Zuckerberg: “Sinto muito que isso tenha acontecido. Esse talvez tenha sido o maior erro que já cometemos” (Crédito: AP Photo/Marcio Jose Sanchez)

O Facebook ganha dinheiro de uma maneira engenhosa, embora simples de ser entendida. Seu modelo de negócios está ancorado em três fatores. Primeiro, ele deixa os usuários viciados nas telas dos celulares e dos computadores. Depois, coleta dados sobre o comportamento de seus mais de 2 bilhões de usuários para, na sequência, convencer os anunciantes a pagar bilhões de dólares para enviar publicidade para o seu público-alvo. É uma estratégia usada, com algumas variações, por quase todas as empresas de mídia. A diferença do Facebook e de seus pares do mundo digital, como o Google e o Twitter, é que ele consegue direcionar a mensagem com uma precisão cirúrgica.

Essa estratégia tem sido bem-sucedida desde que o Facebook foi criado, em 2004, nos dormitórios da tradicional Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, por Mark Zuckerberg em conjunto com três amigos: o brasileiro Eduardo Saverin e os americanos Chris Hughes e Dustin Moskovitz. Desde sua origem, a rede social tornou-se uma máquina de ganhar dinheiro. Quando abriu capital, em maio de 2012, a empresa foi avaliada em US$ 72 bilhões. Em quase seis anos, esse valor multiplicou-se quase oito vezes. Em 2017, a companhia faturou US$ 40,6 bilhões e lucrou US$ 15,9 bilhões. Nada parecia ser capaz de parar Zuckerberg. Tanto que se alimentou, no ano passado, a ideia de que ele poderia se candidatar a presidência dos Estados Unidos, em 2020.

Nos últimos dois anos, no entanto, o Facebook está sob pressão. Primeiro, por conta da epidemia de compartilhamento de notícias falsas, que teve papel relevante na eleição americana em 2016. Segundo, em razão da manipulação russa no pleito eleitoral dos EUA. Agora, Zuckerberg e sua empresa estão no centro de um escândalo que expôs os dados de mais 50 milhões de usuários da rede social, revelado pelo jornal americano The New York Times e pelos ingleses The Guardian e The Observer, nos dias 17 e 18 de março. As informações foram obtidas entre junho e agosto de 2014 através de um aplicativo desenvolvido por Aleksandr Kogan, então pesquisador e psicólogo da Universidade de Cambridge.

O Facebook concordou que o aplicativo fizesse a coleta de dados em sua plataforma para fins acadêmicos. Mas Kogan foi além. Ele vendeu as informações para a consultoria de marketing político Cambridge Analytica (CA), uma empresa que tinha em seus quadros Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca no governo Trump, e fundador site de ultradireita Breitbart News. A CA recebeu também US$ 15 milhões do bilionário americano Robert Mercer, um dos principais financiadores do partido Republicano e do movimento conservador de direita dos Estados Unidos.

O programa criado por Kogan foi chamado de This is Your Digital Life (Esta é sua vida digital, na tradução do inglês) e funcionava como uma das centenas de pesquisas e testes existentes na rede social. A aplicação analisava o perfil do usuário e, então, determinava se a pessoa era extrovertida, alegre, se gostava de um determinado assunto, entre outras características. Para fazer isso, os usuários precisavam autorizar o aplicativo a vasculhar os seus perfis e, portanto, obter dados publicados por eles em suas páginas no Facebook. Pouco mais de 270 mil pessoas usaram o aplicativo em troca do pagamento de pequenas quantias.

Além de colocar as mãos em nomes, idades, profissões, postagens, curtidas, fotos, vídeos e outros dados dos internautas que realizavam o teste, o software também vasculhava essas mesmas informações dos amigos que essas pessoas tinham na rede social. Detalhe: sem a autorização deles. Com isso, a CA conseguiu montar, de forma ilegal, um banco de dados com 50 milhões de pessoas. O passo seguinte foi cruzar essas informações com registros eleitorais americanos para criar o perfil psicológico desse contingente e enviar propaganda com base em seus medos, preferências religiosas, políticas e culturais.

Controle eleitoral: A criacão de um banco de dados com informações pessoais de 50 milhões de usuários do Facebook coloca em risco a democracia. As empresas envolvidas no esquema são acusadas de manipular as eleições presidenciais americanas que deram a vitória para Donald Trump (à dir.) e o referendo do Brexit (Crédito:Odd Andersen/AFP | AFP Photo/POOL/Evan Vucci)

Foi dessa forma que foi criada uma “máquina cultural” capaz de manipular a opinião pública e influenciar as eleições presidenciais americanas de 2016 e os debates do referendo do Brexit. Quando o caso veio à tona, revelado pelo cientista de dados Christopher Wylie, um ex-funcionário da CA, o mundo do Facebook, literalmente, caiu. Em quatro dias, seu valor de mercado derreteu quase US$ 60 bilhões, passando de US$ 537,7 bilhões para US$ 479 bilhões, na quinta-feira 22. Zuckerberg ficou quatro dias “desaparecido” – nem mesmo seus funcionários o viram pelos corredores do quartel-general da companhia, em Menlo Park, no coração do Vale do Silício, nos Estados Unidos. Quando rompeu o silêncio, fez um mea culpa sobre o episódio. “Eu sinto muito que isso tenha acontecido”, disse Zuckerberg, em entrevista à emissora americana CNN, na quarta-feira 21. “Esse talvez tenha sido o maior erro que já cometemos.” Em uma longa nota publicada em seu perfil no Facebook, ele foi além. “Temos a responsabilidade de proteger seus dados, e, se não pudermos fazer isso, não merecemos servir vocês”, escreveu ele, no mesmo dia.

O episódio não afeta apenas a credibilidade do Facebook, mas de toda a indústria conhecida como Big Data, que armazena um gigantesco volume de dados estruturados ou não estruturados para que as companhias possam ter insights sobre seus negócios e seus consumidores. A essência da operação do Facebook, assim como do Google e de outras empresas desse novo mundo digital, é usar informações dos usuários para traçar perfis e manipulá-los emocionalmente para ganhar dinheiro. O Google, por exemplo, sabe tudo o que você pesquisa na rede. O aplicativo de mensagens WhatsApp tem o número de seu celular e sua localização. O aplicativo Waze conhece os seus trajetos. A varejista online Amazon adivinha os seus desejos de consumo. “O Facebook desenvolveu uma tecnologia que transforma capital social em financeiro”, afirma Marcelo Coutinho, coordenador do mestrado profissional da Fundação Getúlio Vargas. “Todo esse problema vai tornar os usuários muito mais sensíveis ao valor de sua privacidade.”

Para se assegurar juridicamente, as empresas de Big Data criam contratos para explicar como os dados serão usados comercialmente. Quem quiser usar o serviço, precisa concordar com os termos de uso e de privacidade. No caso da CA, o Facebook a acusa de ter rompido com esse acordo, pois ela não poderia ter usado as informações de forma comercial, mas apenas para fins acadêmicos. Pesa contra Facebook, no entanto, o fato de que a empresa sabia da existência do aplicativo de Kogan, usado pela Cambridge Analytica, desde 2015.

Na época, o programa foi banido da rede social por infringir as políticas que não permitem o compartilhamento de dados sem o consentimento das pessoas. O Facebook ainda exigiu que Kogan e a empresa britânica dessem garantias de que tinham apagado todos os dados adquiridos. A Cambridge Analytica teria acatado ao pedido, mas a recente revelação põe em xeque a versão dos britânicos. “Foi uma quebra de confiança entre Kogan, a Cambridge Analytica e o Facebook”, escreveu Zuckerberg. “Mas também uma quebra de confiança nossa com as pessoas que compartilham seus dados conosco.”

O caso ganhou contornos mais dramáticos depois que uma reportagem do canal britânico Channel 4 retratou nua e cruamente as práticas da Cambridge Analytica. O vídeo mostra um repórter da emissora tendo conversa com o presidente da CA, Alexander Nix, e Mark Turnbull, diretor da consultoria. Os diálogos são devastadores. Nix, por exemplo, sugere o uso de prostitutas para gravar vídeos comprometedores. Turnbull resume como a CA age. “Não adianta disputar uma eleição com fatos, mas sim com emoções. E tudo precisa acontecer sem parecer propaganda”, afirmou. “Fizemos o México, a Malásia e agora vamos para o Brasil.” Zuckerberg, na entrevista à CNN, disse que se empenhará em evitar essas manipulações. “Há uma grande eleição no Brasil. Pode apostar que estamos muito comprometidos em fazer tudo o que pudermos para garantir a integridade dessas eleições no Facebook.”

A BRIGA NOS TRIBUNAIS O caso envolvendo a Cambridge Analytica é mais um da série de problemas com privacidade que o Facebook vem enfrentando ao longo de sua existência. Os investidores, até agora, nunca deram muita atenção a essa questão. Mas, dessa vez, a reação parece ser diferente. Os fundos que investem em ações estão começando a desmontar suas posições no Facebook e recomendando cautela. A escandinava Nórdica Asset Management, que gerencia € 330 bilhões, proibiu que fundos sustentáveis investissem na companhia americana.

Confusão no Brasil: André Torreta, empresário parceiro da Cambridge Analytica no País, disse que foi “pego de surpresa” com o que aconteceu (Crédito:Divulgação)

“Não podemos mais assumir mais riscos em relação a isso”, disse Sasja Beslik, chefe da área de finanças sustentáveis do grupo ao jornal britânico Financial Times. A alemã Union Investment e as americanas Trilium Asset Management e Arjuna Capital, que somadas administram fundos de quase € 37 bilhões, também demonstraram apreensão com o atual momento da companhia. “Esse tombo de quase de US$ 60 bilhões é extremamente crítico”, diz Daniel Domeneghetti, CEO da consultoria brasileira DOM Strategy Partners. “Eles estão no mercado da credibilidade. É como se uma empresa geradora de eletricidade ficasse sem energia.”

Os usuários também reagiram. Na internet, uma campanha com a hashtag #DeleteFacebook começou a ganhar corpo e recebeu a adesão de um empreendedor ilustre e inusitado: Brian Acton, o cofundador do aplicativo de mensagens WhatsApp, que foi comprado pelo Facebook, em 2014, por US$ 22 bilhões. Acton, que deixou o WhatsApp em setembro do ano passado, publicou uma mensagem no Twitter apoiando o movimento. Até sexta-feira 23, às 12 horas, ela havia sido curtida 23 mil vezes e compartilhada outras 12 mil. “O Facebook vai permanecer vivo por mais um bom tempo”, diz Roger Kay, da consultoria americana Endpoint Technologies. “Esse, porém, é um sinal de fraqueza”.

Os problemas do Facebook não vão se limitar aos investidores e aos consumidores que querem deletar suas contas na rede social – eles, por si só, já seriam uma imensa dor de cabeça para Zuckerberg. A rede social terá de se preparar para enfrentar os tribunais. Apesar de Zuckerberg ter colocado a culpa pela exposição dos dados em Kogan (que afirmou à emissora britânica BBC que está sendo usado como “bode expiatório”), e na Cambridge Analytica, o Facebook deve ser responsabilizado pela exposição dos dados de seus usuários. “Eles podem cobrar explicações de seus parceiros, mas também são responsáveis por essa questão”, diz Patrícia Peck, advogada especializada em direito digital. “O usuário tem uma relação de confiança com o Facebook e não com os parceiros da empresa.”

Na terça-feira 20, Zuckerberg teve a primeira visão do que o espera nos próximos meses. O investidor individual Fan Yuan moveu a primeira ação coletiva sobre o caso. A queixa, registrada no tribunal federal de São Francisco, nos EUA, é de que o Facebook não apresentou aos seus investidores provas de que permitia que empresas terceiras, como a Cambridge Analytica, tivessem acesso a dados pessoais dos usuários da rede social. Agora, outros investidores têm 60 dias para decidir se vão se juntar a Yuan. “Todos sabem que esse é um caso vencedor”, disse Jeremy Lieberman, um dos sócios do escritório Pomerantz LPP que está à frente do caso, à agência de notícias Reuters. “É uma bola de neve para o Facebook.” Outro processo foi aberto em San Jose. Neste, a parte reclamante é uma usuária da rede social que se sentiu prejudicada por ter sua informação usada pela Cambridge Analytica. A tendência é de que mais processos surjam ao longo dos próximos meses.

Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) abriu um inquérito para investigar a colaboração do Facebook com a Cambridge Analytica. O órgão já estava na cola do CEO americano desde 2011. Na época, a rede social foi advertida por permitir o uso indevido de dados para fins de pesquisa acadêmica. O acordo previa que, em caso de reincidência nos 20 anos seguintes, a empresa poderia ser obrigada a pagar multas de até US$ 40 mil por usuário afetado. Com mais de 50 milhões de perfis expostos no escândalo da Cambridge Analytica, a multa poderia chegar a mais de US$ 2 trilhões.

“Eles estão enfrentando um potencial risco de colapso com essas acusações criminais”, diz Rob Enderle, da consultoria americana Enderle Group. “Os países tendem a agir de forma muito agressiva quando se trata de atividades que prejudicam seus governos”
Autoridades da União Europeia também exigem respostas. “O Facebook precisa esclarecer aos representantes dos 500 milhões de europeus o fato de que seus dados pessoais foram usados para manipular a democracia”, escreveu no Twitter o presidente do Parlamento Europeu, o italiano Antonio Tajani.

#DeleteFacebook: campanha para o boicote ao Facebook recebeu o apoio de Brian Acton, fundador do Whatsapp, aplicativo de mensagens adquirido por Zuckerberg em 2014 (Crédito:Divulgação)

O mesmo pedido também foi feito pelo Parlamento Britânico. “Chegou a hora de ouvir um alto executivo do Facebook com autoridade suficiente para explicar esse fracasso retumbante”, disse Damien Collins, presidente do comitê parlamentar que está em cima do caso e convocou Zuckerberg para um depoimento. Na Alemanha, a ministra da Justiça Katarina Barley exigiu esclarecimentos da empresa de Menlo Park sobre a existência de usuários alemães afetados. Se isso tiver acontecido, a companhia pode ser condenada a arcar com multas de até 4% de seu faturamento global anual. Em Israel, a autoridade de Proteção da Privacidade apura se a prática afetou internautas israelenses e infringiu leis de privacidade do país.

O Brasil não ficou para trás. O Ministério Público do Distrito Federal vai apurar se os brasileiros foram afetados pelo esquema. De acordo com o texto do inquérito civil, a instauração se deu “considerando que existem suspeitas de que a Cambridge Analytica pode estar fazendo uso, de forma ilegal, dos dados pessoais de milhões de brasileiros, usuários do Facebook ou não, para fins da construção de perfis psicográficos em escala nacional e regional.” Na legislação brasileira, a empresa de Zuckerberg pode até ser acusada de cumplicidade. “O Facebook tem responsabilidade indireta na violação de dados”, diz Gisele Truzzi, advogada especializada em direito digital. “É, portanto, cúmplice.”

Quem também deve ser convocado para depor é André Torretta. Consultor de marketing político, o empresário baiano, que já trabalhou nas campanhas de José e Roseana Sarney e também de Fernando Henrique Cardoso, firmou uma parceria com a empresa britânica em 2017. “Eles queriam criar uma parceria no Brasil”, disse Torretta em entrevista para DINHEIRO. “Eles queriam a pegar metodologia que eles usavam lá e aplicá-la no Brasil.” Segundo Torretta, a empresa não entrou em detalhes sobre como montava seu banco de dados, o que, para ele, “não interessava”.

Questionado se havia um banco de dados com brasileiros, o empresário diz que “o interesse era prestar serviços no Brasil” e “se fosse necessário montar um banco de dados, montava-se um banco de dados”. O acordo com a Cambridge foi encerrado unilateralmente pelo brasileiro na segunda-feira 19 após ter ficado sabendo das práticas indevidas da parceira britânica. Sobre o futuro da Cambridge Analytica, Torretta é claro. “Eu não quero nem saber. É igual a ex-namorada.”

Colaborou: Machado da Costa

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